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Conto: Transgressão


Transgressão


            3:33 AM.

            Levanta-se da cama e sente suas pernas formigarem.

            Nunca conseguiu compreender o porquê de já acordar sentindo dores. Seria o stress tomando conta de seu corpo ou a idade avançada já estava mostrando seus efeitos?

            Seguiu até o banheiro e, lavando o rosto na pia, encarou a face que olhava de volta para si através do espelho. O que fez para merecer um retrato tão grotesco de si mesma? Os anos de glória tinham ficado para trás, mas, ainda hoje, tinha suas obrigações e perder tempo relembrando o passado não tiraria Ele do seu encalço. Era preciso cumprir suas funções calada, ou o pior poderia acontecer.

Há anos que Greta era fada madrinha. Na verdade, desde que nasceu sabia que estava predestinada a cumprir esta função. Sua mãe havia sido fada madrinha, sua avó, sua bisavó… Enfim, sua árvore genealógica era repleta de fadas madrinhas e, sem ter outra escolha, ela também foi fadada a esse destino.

A vida de uma fada madrinha não era nada parecida com o que os contos dos humanos demonstravam. As fadas eram submissas ao tirano, soberano das profundezas e detentor de todas as almas. As obrigações de uma fada eram das mais variáveis, mas, engana-se quem pensa que elas existiam para cuidar de meninas desprotegidas e acalentar os corações oprimidos.

As fadas madrinhas existiam para carregar almas até o submundo. Acompanhavam a vida inteira de sujeitos seletos e trilhavam um árduo e tortuoso caminho de sofrimento e destruição, até que a criatura amadrinhada optasse pelo suicídio, dando fim à sua vida e deixando sua alma livre para ser recolhida pela fada e encaminhada até o inferno, onde o sofrimento seria eterno e Ele se alimentaria de toda a dor e desgosto sentido pelas criaturas.

Há muito tempo que Greta deixou de ressentir-se de sua função e buscava sempre agir conforme ordenava o Soberano, pois, sabia que as consequências de uma possível rebelião eram penosas.

Naquela madrugada, hora perfeita para observar seus afilhados, Greta dirigiu-se ao mundo humano, subindo pela fenda que interligava o submundo à superfície e, ignorando os olhares dos guardas dos portões, subiu com olhar intenso e postura austera, sentindo que seria hoje que aquela infame criatura sucumbiria ao sofrimento e tiraria a própria vida.

Greta tinha apenas um afilhado no momento, apesar de não ter uma grande paixão por sua função, ela era uma fada madrinha extremamente eficaz e, como Ele sempre dizia, uma das mais rentáveis, trazendo muitas almas ao inferno para o Soberano devorar.

Seguiu rumo à deplorável construção onde vivia seu afilhado. Pedro, com vinte e oito anos de idade, não havia realizado nada de louvável nesta vida. Viciado em drogas, tinha afundado sua família em dívidas e amargura. Saiu da casa dos pais muito novo e passou a viver de pequenos assaltos, a fim de suprir sua necessidade de heroína. Greta sentia uma repulsa enorme por aquele indivíduo e sabia que aquela alma não seria de grande valia para seu mestre, mas, como mandava a obrigação, ela precisava observar aquele imundo para que, no momento em que morresse, fosse direcionado ao inferno.

Sendo invisível a olhos humanos, ela sentou-se num canto escuro, observando o infeliz retornar de uma noite nefasta, onde havia matado um casal de idosos durante um assalto; em suas mãos estavam uma seringa e um embrulho que, provavelmente, continha a droga.

Sentou-se num colchão podre de tão sujo, cheio de manchas de vômito e sangue, removeu o cinto de sua calça e prendeu-o a seu braço, retirou do embrulho uma substância que pôs sobre uma colher que estava encima do colchão, pegando o isqueiro do bolso, esquentou a colher, fazendo a substância ficar diluída e, usando a boca para auxiliar no uso da seringa, pôs o conteúdo da colher dentro da seringa. Levou a seringa até sua veia e, instantaneamente, deitou-se, sendo levado pela onda voraz que a droga infligia em seu corpo, deixando-o levitar pela existência e fazendo-o sentir-se o mais poderoso dos homens. Com os olhos fechados, Pedro balbucia palavras que Greta não conseguia distinguir daquela distância, mas, asqueroso como era, ela preferia não se aproximar e evitou encarar muito aquele humano infame que tinha se tornado seu carma. Ela não via a hora de ele se matar e acabar com o sofrimento que ela passava, pois, apesar dos pesares, ela já tinha amadrinhado algumas criaturas graciosas e não via a hora de outro humano considerável chegar a sua vida, amenizando seu próprio sofrimento enquanto ela infligia-lhe mais e mais dor.

Passados alguns minutos, Greta sentiu-se estranha; como se alguém a observasse. Levantou os olhos e notou que Pedro, agora sentado no colchão imundo com o cinto ainda preso em seu braço, olhava em sua direção.

Mas como isso era possível? Ela era invisível a olhos humanos. Provavelmente o infeliz estava delirando devido a maldita droga.

— Você veio me buscar anjo da morte? – bradou o infeliz sentado no colchão com a boca espumando.

— Você consegue me ver criatura? – disse Greta com escárnio e incredulidade ecoando em sua voz.

— É claro que consigo te ver demônio estúpido! – bradou o viciado com seus lábios pálidos e sem vida – Agora me responda: você veio me buscar anjo da morte? – os olhos de Pedro estavam brancos e opacos, sem a chama da vida.

Sentindo um tremor em seu interior, a fada madrinha, pela primeira vez em toda sua vida, ficou sem palavras. Como aquilo era possível? Ele ainda não estava morto, porém, conseguia vê-la… A magia em seu interior estalou e Greta sentiu seus sentidos anuviarem. Quando pensou em levantar e encarar o miserável, ele levantou-se e, como num feixe de luz, chegou à sua frente. Ficando rente à seu rosto e encarando-a com seus olhos brancos. Por um minuto ela pensou reconhecer aqueles olhos, mas, isso era impossível. Não podia ser ele…

— Então, é assim que cumpre o seu papel criatura inferior? Não consegue nem exercer a mínima das funções? – a voz ecoou gélida em seus ouvidos e, num lampejo de consciência, ela a reconheceu.

— Soberano? Mas, como é possível? – tentou mostrar-se firme e forte, porém, sua voz soou como uma súplica.

Estendendo a mão direita e fechando o punho ao redor do pescoço de Greta, Pedro, que agora ela sabia que estava possuído pelo espírito d’Ele, o rei do submundo, apertou com uma força descomunal, levantando a fada madrinha do chão.

— Minha paciência para servos como você chegou ao fim, escória! Já tenho força o suficiente e não preciso mais de miseráveis como você para cumprir meu serviço. Agora já posso vir à superfície e recolher eu mesmo as almas de que necessito. Sempre tive uma dúvida: quão forte serei depois de degustar a alma de uma fada madrinha? Bom, vamos experimentar…

Abrindo a boca pálida do humano, Ele começou a sugar a energia de Greta, fazendo com que a fada madrinha sentisse a vida e magia exaurindo-se e sendo expelida de seu corpo.

Num lapso momento de loucura e coragem, a fada fechou os olhos e, com toda a força possível, sentindo emergir de seu interior e entranhas a essência da magia demoníaca, explodiu num feixe de luz que inundou o local. Sugando sombras e escuridão.

Do alto do teto, observando com curiosidade as chamas lá embaixo, Greta, agora resumida a um corpo celeste, uma alma sujeita a vagar eternamente pelos confins do submundo, notou seu corpo (ou o que restou dele) em frangalhos, partindo-se com as chamas e resumindo-se à cinzas. Enquanto o corpo de Pedro jazia completamente desfigurado, numa espécie de gosma preta que se espalhava e ia de encontro às cinzas de Greta.

Sentindo um vigor nada familiar ela sentiu-se, pela primeira vez, feliz. Não tinha mais que prestar contas a ninguém.

Quando se preparava para sair dali, viu abrir-se a fenda que levava ao submundo.

Surgindo como trevas e escuridão em meio à tempestade, Ele a olhava com um sorriso profano nos lábios deformados e um brilho obscuro nos olhos demoníacos.

— Mas que honra! Vejo que decidiu viver comigo eternamente. – a voz cortou-lhe feito navalha, sentiu seu corpo retrair-se, involuntariamente, aproximar-se d’Ele – Venha, tenho planos para você. Sua alma é deliciosa e terei prazer em degustá-la aos poucos enquanto sofre meus tormentos.


Sentindo como se mil facas cortassem-lhe a face, a fada madrinha foi levada aos confins do submundo, onde sucumbiu a toda desgraça e padecimento que o Demônio pôde lhe infligir.

O talento está no sangue § Artistas Liberais


Há alguns meses [mais precisamente há 11 meses atrás] resolvi realizar uma mudança significativa em minha vida: me dedicar a minha paixão à literatura.

Mas como?

Tantas incertezas e dúvidas permeavam minha mente [constantemente] e eu não sabia ao certo como realizar meu desejo…

Foram muitos tropeços e vários dias de escrever e deletar, escrever e deletar… até que senti confiança em um material de minha autoria. Agora a questão era: como publicar?

Tive contato com algumas editoras, muitos não, muita falta de resposta, mas uma resposta em particular foi o estopim necessário para eu dizer: “Okay Helder, agora siga em frente e deixe os medos para trás”.

[.]

Gosto de pensar que a “ARTE” sempre esteve presente em minha vida.

Eu era uma criança diferente. Extremamente tímido. Não conseguia me expressar como os outros [tanto que, até hoje, tem muita gente que não sabe que escrevo e amo escrever, rs] e encontrava em meus escritos uma maneira de me ausentar do mundo e percorrer caminhos que, usualmente, eu não conseguiria sequer me imaginar percorrendo.

Frequentador assíduo da Biblioteca Municipal perdi a conta de quantas vezes renovei minha ficha e quantos livros foram emprestados e lidos nesses vinte e oito anos de vida.

Eu tinha uma “agenda” onde escrevia pequenos textos, frases, parágrafos fantasiosos, desenhos e rabiscos… Sempre que a mente ficava turva em meio ao embaçamento causado pela profusão de pensamentos que neblinavam meu consciente, o lápis assumiu e as linhas eram preenchidas com devaneios e anseios e toda a sorte de expressão artística que convinha para sanar a inquietação.

[..]

No final do ano de dois mil e quinze e início do ano de dois mil e dezesseis, dedicando-me exclusivamente à escrita e à maneiras de expressar minha criatividade, me deparei com o concurso literário Artistas Liberais, da Dalle Piagge Editora.

A premissa do concurso era que pessoas talentosas [conhecidas ou não] escrevessem contos retratando artistas e a arte em suas mais variadas formas, o ponto crucial era que o personagem tivesse a ARTE como estilo de vida.

Sem saber o que esperar, mas com uma ânsia tremenda de ter meu conto publicado e lido por desconhecidos, escrevi o conto O talento está no sangue e, quando vi o resultado do concurso, confesso que não acreditei!

Lembrei-me das horas passadas na biblioteca…

Dos mangás lidos nos intervalos das aulas…

Dos parágrafos rabiscados nervosamente na velha agenda surrada…

Dos pensamentos que insistem em inundar minha mente, fazendo-me náufrago dentro de mim mesmo…

[...]

Não direi que consegui deixar os medos inteiramente para trás [creio que, especialmente para uma pessoa “perfeccionista” e metódica quanto eu, é praticamente impossível de fazê-lo], porém, hoje, com dois livros publicados [de maneira independente, do meu jeito, com a minha cara e exalando o amor depositado durante a escrita] posso afirmar: VALEU A PENA DAR UM SALTO NO ESCURO.

Meu conto O talento está no sangue faz parte da coletânea:


Artistas Liberais

Sinopse: O que é Arte e o que faz o artista ser uma figura tão interessante? Convidamos diversos autores para responderem a esta pergunta, ou se divertir tentando. Nestas páginas, você irá encontrar histórias sobre escritores, escultores, pintores, músicos e qualquer outra atividade que tente expressar os seus sentimentos. Esperamos que goste de Artistas Liberais. Um livro onde artistas falam sobre artistas.

DallePiagge Editora
Número de páginas: 194
Autor/Organizador: Felipe Sali e Paulo Cantuária 

Adquira um exemplar clicando aqui

A morte da morte

[...] As últimas semanas de aula foram bem corridas. Confesso que não consegui realizar com meus alunos tudo o que gostaria, mas, infelizmente, o sistema de ensino ainda é bem fechado e não dá muita margem aos momentos de criatividade e fruição, enfim, tendo contornar essa situação da melhor maneira possível.


    Em uma das últimas semanas de aula foi proposto pela professora que os alunos realizassem a reescrita de um dos Contos de Assombração trabalhados em sala ou, melhor ainda, que criassem um conto de sua própria imaginação.


    Aproveitando o embalo e o clima de criatividade que se fez presente em sala, produzi um pequeno conto sobre a morte. 


    Veja bem, trabalhando o Projeto Narrativas Literárias "Contos de Assombração", o tema recorrente em quase todos os contos e histórias que trabalhamos em sala de aula foi a morte. Portanto, resolvi utilizá-lo em minha escrita.


    Uma pena que não consegui lê-lo para toda a turma, pois, o cronograma de atividades estava bem apertado. Mas fiquei satisfeito com a resposta que tive dos alunos que ouviram e leram meu conto (aqueles que sempre estão a minha volta, me rodeando e me enchendo de beijinhos, rs). 


A morte da morte
 

          Eram três horas da manhã quando ouviu o chamado. Estava entediada, isso é verdade. O submundo pode ser muitas vezes, maçante.


          Pegando sua fiel companheira, a foice, dirigiu-se aos portões, saindo em busca de mais uma alma amaldiçoada para compor seu harém macabro.


Essa era a morte, indo trabalhar.


          Seguindo seu caminho, escondendo-se nas sombras e escuridão, a morte, sempre calma e serena, chegou ao seu destino.


          A casa de dois andares, com a pintura já meio desbotada e algumas rachaduras nas paredes, era cercada por um muro baixo. O quintal era repleto das mais diversas plantas. No andar superior, duas janelas fechadas e com os vidros cobertos por jornal, compunham a fachada da casa.


          Entrando sorrateira e silenciosamente, a morte começou a procurar seu alvo. A única informação que tinha era o nome da pobre criatura que seria profanada e carregada para as profundezas: Marcos.


          No auge de seus vinte e oito anos, tendo experienciado situações que até Deus duvida e já comido o pão que o diabo amassou, mal sabia Marcos que a morte o observava.


          Segurava em sua mão direita um objeto que a morte não conseguiu identificar, enquanto com a esquerda dedilhava um estranho instrumento que produzia uma melodia assombrosa. De seus lábios saíam palavras numa língua há muito tempo esquecida.


          A morte não conseguiu compreender como, mas, de alguma maneira, aquela melodia estava deixando-a desconcertada.


          Aproximando-se de Marcos sem emitir nenhum som, viu aquela nuca branca convidando-a ao ataque. Levantou a foice que, numa disposição imprópria de luzes e reflexos, acabou por emitir um brilho, projetando uma sombra à frente de Marcos.


          Sobressaltado por aquela sombra que se agigantou diante de si, Marcos virou para trás soltando o instrumento da mão esquerda e levantando o objeto que estava na direita. A melodia assombrosa se intensificou, apesar de o instrumento não estar sendo tocado.


          Num súbito lampejo de claridade intelectual a morte compreendeu tudo! A melodia era um mantra de destruição, a língua falada por aquele ser era um feitiço de apagamento e o objeto em sua mão direita era uma varinha. O infeliz era um mago!
          

     Desconcertada e estupefata, a morte caiu.


          O feitiço proferido por Marcos, o mago, atingiu-a no centro de seu corpo putrefato.


          O som de metal estalando ecoou pelo recinto. A foice estava no chão.


          Encostando a varinha no vazio dentro do manto negro, Marcos deu o golpe final.


          - Destroya in de momentum satan!


          Antes de desvanecer para os confins do inferno astral, a morte, antiga soberana ceifadora de almas, percebeu tudo: seu mestre havia premeditado sua destruição. Enviou-a até ali para ser aniquilada pelo mago Marcos. Mas... por quê?


          Ela nunca descobriria a resposta.


          Existiria na inexistência e seu sofrimento seria eterno.


          Nunca mais ficaria entediada, agora que seria o brinquedinho do diabo.