A morte da morte

[...] As últimas semanas de aula foram bem corridas. Confesso que não consegui realizar com meus alunos tudo o que gostaria, mas, infelizmente, o sistema de ensino ainda é bem fechado e não dá muita margem aos momentos de criatividade e fruição, enfim, tendo contornar essa situação da melhor maneira possível.


    Em uma das últimas semanas de aula foi proposto pela professora que os alunos realizassem a reescrita de um dos Contos de Assombração trabalhados em sala ou, melhor ainda, que criassem um conto de sua própria imaginação.


    Aproveitando o embalo e o clima de criatividade que se fez presente em sala, produzi um pequeno conto sobre a morte. 


    Veja bem, trabalhando o Projeto Narrativas Literárias "Contos de Assombração", o tema recorrente em quase todos os contos e histórias que trabalhamos em sala de aula foi a morte. Portanto, resolvi utilizá-lo em minha escrita.


    Uma pena que não consegui lê-lo para toda a turma, pois, o cronograma de atividades estava bem apertado. Mas fiquei satisfeito com a resposta que tive dos alunos que ouviram e leram meu conto (aqueles que sempre estão a minha volta, me rodeando e me enchendo de beijinhos, rs). 


A morte da morte
 

          Eram três horas da manhã quando ouviu o chamado. Estava entediada, isso é verdade. O submundo pode ser muitas vezes, maçante.


          Pegando sua fiel companheira, a foice, dirigiu-se aos portões, saindo em busca de mais uma alma amaldiçoada para compor seu harém macabro.


Essa era a morte, indo trabalhar.


          Seguindo seu caminho, escondendo-se nas sombras e escuridão, a morte, sempre calma e serena, chegou ao seu destino.


          A casa de dois andares, com a pintura já meio desbotada e algumas rachaduras nas paredes, era cercada por um muro baixo. O quintal era repleto das mais diversas plantas. No andar superior, duas janelas fechadas e com os vidros cobertos por jornal, compunham a fachada da casa.


          Entrando sorrateira e silenciosamente, a morte começou a procurar seu alvo. A única informação que tinha era o nome da pobre criatura que seria profanada e carregada para as profundezas: Marcos.


          No auge de seus vinte e oito anos, tendo experienciado situações que até Deus duvida e já comido o pão que o diabo amassou, mal sabia Marcos que a morte o observava.


          Segurava em sua mão direita um objeto que a morte não conseguiu identificar, enquanto com a esquerda dedilhava um estranho instrumento que produzia uma melodia assombrosa. De seus lábios saíam palavras numa língua há muito tempo esquecida.


          A morte não conseguiu compreender como, mas, de alguma maneira, aquela melodia estava deixando-a desconcertada.


          Aproximando-se de Marcos sem emitir nenhum som, viu aquela nuca branca convidando-a ao ataque. Levantou a foice que, numa disposição imprópria de luzes e reflexos, acabou por emitir um brilho, projetando uma sombra à frente de Marcos.


          Sobressaltado por aquela sombra que se agigantou diante de si, Marcos virou para trás soltando o instrumento da mão esquerda e levantando o objeto que estava na direita. A melodia assombrosa se intensificou, apesar de o instrumento não estar sendo tocado.


          Num súbito lampejo de claridade intelectual a morte compreendeu tudo! A melodia era um mantra de destruição, a língua falada por aquele ser era um feitiço de apagamento e o objeto em sua mão direita era uma varinha. O infeliz era um mago!
          

     Desconcertada e estupefata, a morte caiu.


          O feitiço proferido por Marcos, o mago, atingiu-a no centro de seu corpo putrefato.


          O som de metal estalando ecoou pelo recinto. A foice estava no chão.


          Encostando a varinha no vazio dentro do manto negro, Marcos deu o golpe final.


          - Destroya in de momentum satan!


          Antes de desvanecer para os confins do inferno astral, a morte, antiga soberana ceifadora de almas, percebeu tudo: seu mestre havia premeditado sua destruição. Enviou-a até ali para ser aniquilada pelo mago Marcos. Mas... por quê?


          Ela nunca descobriria a resposta.


          Existiria na inexistência e seu sofrimento seria eterno.


          Nunca mais ficaria entediada, agora que seria o brinquedinho do diabo.

Um comentário:

  1. Que conto!!! Em muitas das histórias de Vovô Bello não tive sequer uma em que ela morria!!! Amei!!!

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