[...] Uma constante que, creio eu, se faz presente em todas as culturas e sociedades do mundo, é a lenda urbana.
Acredito que em cada povoado, tribo, cidade, vilarejo, metrópole, enfim, em qualquer local onde convivem seres humanos há, no mínimo, uma lenda urbana que faz parte do folclore e imaginário das pessoas. Aqui no Brasil temos o privilégio de ter uma cultura extremamente rica e, por se tratar de um país de dimensões continentais, a diversidade cultural é gigantesca. Temos lendas indígenas, lendas folclóricas e lendas urbanas das mais variadas "espécies" (quem nunca ouviu falar no "Chupa-Cabra" ou no Saci-Pererê ou no Lobisomem?).
Uma das lendas urbanas mais difundidas e conhecidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, é a da "Loira do Banheiro" (conhecida também como Mulher de Algodão, Maria Sangrenta ou Bloody Mary nos Estados Unidos). Há inúmeras variações desta lenda. Em algumas versões, a loira é uma garota que adorava matar aula e acaba escorregando e batendo a cabeça no vaso sanitário e morrendo; em uma outra versão ela se trata de uma professora que acaba tendo um caso com um aluno e é assassinada pelo marido ciumento; numa outra versão ela é uma mãe cujo filho havia ficado de castigo no banheiro da escola e ela morre num acidente de carro tentando chegar até ele, são colocados pedaços de algodão em seus ferimentos, para evitar hemorragias...
Enfim, são infinitas versões da "Loira do Banheiro". Resolvi adaptar esta lenda para recontar aos alunos nesta última semana de aula. Optei em descrever uma loira no ambiente escolar que, tendo sofrido bullying, acaba tendo um destino insólito.
[...]
A loira do banheiro
(lenda adaptada por
Helder Guastti)
Todas as
manhãs ela levanta com um desânimo descomunal. Caroline odeia ir à escola. Não
consegue descrever desgosto maior do que ter que ir àquele lugar e aturar
aquelas pessoas terríveis.
Ela está no
4º ano do ensino fundamental. 10 anos de idade. Mora com sua mãe, seu pai e o
irmão mais novo.
Quando mais
nova adorava ir à escola, frequentar as aulas (especialmente as de Língua
Portuguesa, sua disciplina favorita) e curtir o horário de recreio, porém, nos
últimos tempos, Caroline tem sofrido bastante no ambiente escolar. Seus colegas
de turma implicam com ela, dando-lhe apelidos e tratando-a com desrespeito e
xingamentos. Ela não sabe o que houve ou o que fez de errado para merecer este
tipo de tratamento, mas os indivíduos que a importunam não se dão ao trabalho
de explicar-lhe os motivos de suas ofensas.
- Não
aguento mais esses idiotas! O que fiz para merecer isso? Se eu pudesse acabava
com todos eles e sumia daqui, de uma vez por todas!
Cansada de
ofensas e maus tratos, Caroline passou a matar aula.
Trancava-se
no banheiro da escola, na cabine do meio, todos os dias. Passava o recreio no
banheiro, assistia uma ou duas aulas e o restante da manhã ficava trancada no
banheiro, sem ver ou falar com ninguém. Apenas ela e seus pensamentos que,
constantemente, eram sobre vingança e fugas.
Numa
quinta-feira do mês de dezembro, Caroline acordou um pouco mais animada e
motivada. Tinha tido um sonho maravilhoso na noite anterior e estava sentindo
que as coisas mudariam daquele dia em diante, que sua vida nunca mais seria a
mesma.
Decidiu não
matar aula naquele dia. Era dia de Arte e Educação Física e ela estava motivada
a dar uma mudança em sua vida, independente dos maus agouros de seus colegas.
Naquela
manhã, após a aula de Educação Física, Caroline foi ao banheiro limpar o suor
do rosto e se refrescar.
Foi até à
cabine do meio do banheiro, aquela em que passava a maior parte de seus dias,
quando ouviu muitas risadas e burburinhos. Algumas garotas haviam entrado no
banheiro falando pelos cotovelos e rindo como se tivessem ouvido a piada mais
engraçada do universo.
Caroline fez
o máximo de silêncio possível; aquelas eram algumas das garotas que mais a
incomodavam. Toda a segurança e motivação que havia sentido quando acordou
foram indo por água abaixo. Ficou tensa, prendendo a respiração para não ser
ouvida.
- Gente,
ninguém merece mais aquela tosca da Caroline. Loira azeda e aguada. Alguém, por
favor, jogue álcool em gel nos meus olhos se eu precisar ver aquelas fuças de
fantasma mais uma vez em minha vida. E o que era ela correndo na hora da
queimada? Parecia uma mula desenfreada! Socorro! – falou Ana Clara, enquanto
retocava o batom se olhando no espelho e as companheiras riam freneticamente.
As garotas
malvadas seguiam destilando comentários maldosos e inescrupulosos sobre a pobre
Caroline que a tudo ouvia, se afogando em lágrimas e contendo os soluços dentro
da cabine do banheiro para que as garotas não a ouvissem.
Em meio às
gargalhadas e comentários uma das garotas disse:
- Ei, que
barulho é esse?
Caroline
não havia percebido, mas, depois de tanto chorar em silêncio, já estava
soluçando alto. Descontroladamente.
- Quem é
que tá aí? Saia logo, se você tem amor a sua vida... – ameaçou Ana Clara que,
como Caroline bem sabia, era a líder do grupo de garotas da sala, todas a
seguiam onde quer que fosse e acatavam todas as suas ideias e discursos de
ódio.
A pobre
garota, sentada no vaso sanitário com lágrimas escorrendo pela face e molhando
sua blusa, misturando-se ao suor proveniente do jogo de queimada e elevando-se
com a respiração pesada e os movimentos dos soluços involuntários, ficou ainda
mais desesperada. Tentou abafar os soluços. Mas suas tentativas foram em vão.
Suas mãos tremiam e sua pele transpirava um suor frio, cheio de nervosismo e
ansiedade.
Ana Clara,
a líder maldosa, fez sinal para que as outras garotas ficassem quietas e foi
andando silenciosamente, feito uma onça partindo pra cima da presa, até chegar
à frente da porta da cabine do meio.
Pá! Pá! Pá!
Socou a porta três vezes com toda a força possível.
Caroline
soltou um grito de susto e horror! Agora tremia dos pés à cabeça. As lágrimas
jorravam feito uma cachoeira e seu peito arfava com tanta força devido aos
soluços, que seu corpo parecia estar sofrendo de um terremoto interno.
Ana Clara
colocou os olhos na fenda entre a porta e a dobradiça e avistou Caroline do
outro lado.
- Ah! É
você que está aí sua porca azeda repugnante! Agora, além de tudo, resolveu
ficar espiando nossas conversas não é?! Você vai se arrepender disso sua
escrota. Abra essa porta agora ou eu vou colocar ela abaixo!
O que
fazer? Ela não queria causar problema algum. Caroline pensou que se abrisse a
porta teria de arcar com a fúria de Ana Clara e suas seguidoras tenebrosas,
porém, se ficasse com a porta trancada sofreria com a ira da garota, que
levaria sua atitude como uma afronta e, uma das coisas que Ana Clara mais
odiava, era se sentir desafiada e afrontada, para ela, todos deviam obedecê-la
e respeitá-la, como se fosse a abelha rainha.
Em sua
crise de desespero e nervosismo trêmulo Caroline não conseguiu se mover. Seu
corpo não respondeu a seus comandos e ficou ali, sentada no vaso sanitário da
cabine do meio do banheiro da escola.
- Então é assim
que vai ser né? Você vai se arrepender recalcada. Sua hora chegou. – o tom de
voz de Ana Clara era tão cheio de ódio e rancor que, por um momento, Caroline
sentiu seu coração parar e a respiração falhar.
Ela ouviu
alguns barulhos vindos do lado de fora da cabine, mas não conseguiu
distingui-los.
Os sons que
a garota ouvira vinham de Ana Clara e suas seguidoras que, para arrombar a
porta da cabine do banheiro, retiraram o extintor de incêndio que ficava ao
lado do espelho (quebrando o canto direito do espelho, fazendo tilintar no chão
fragmentos de vidro que refletiam toda aquela barbárie e insanidade) e, em
estocadas firmes e fortes, começaram a bater na porta.
Ana Clara
ficou ao fundo, deixando que as outras garotas acertassem o extintor e proferissem
chutes na porta, a fim de arrombá-la.
Depois de
alguns minutos a porta caiu com força, para dentro, acertando Caroline em cheio
no centro testa. A garota ficou tonta e com a visão meio embaçada. As meninas
malvadas aproximaram-se com ódio no olhar.
- Tragam
essa imunda até aqui! – ordenou Ana Clara com ares de bruxa maligna.
As garotas
puxaram os longos cabelos loiros de Caroline, derrubando-a do vaso sanitário e
arrastando-a pelo chão, algumas davam chutes e outras cuspiam enquanto ela foi
largada sob os pés de Ana Clara.
- Aninha,
por favor, nós éramos amigas quando pequenas. Por que você faz isso comigo
agora? – suplicou a loira.
- Não me
venha com essa de Aninha sua estúpida! Cale a boca! Nunca fui sua amiga! Eu te
odeio, te odeio! – Ana Clara gritava loucamente, suas companheiras
incitavam-na, adorando ver e ouvir as ofensas que ela desferia para a pobre
Caroline.
A menina, jogada no chão sujo do banheiro,
molhada de suor e lágrimas, tremendo e soluçando descontroladamente, com marcas
de chutes e cuspe no corpo, resolveu não resistir. Elas eram muitas e não havia
nada que pudesse fazer para sair daquela situação. Ninguém viria ajudá-la, ela
merecia aquilo.
Uma das
garotas segurou Caroline pelo cabelo, enquanto Ana Clara cortava-o, deixando-o
pelos ombros, todo falhado, com fios longos e embaraçado. Outra das meninas
malvadas pegou o algodão que guardava na bolsa para retirar esmaltes e
maquiagem e enfiou no nariz, ouvidos e boca da pobre garota loira.
Arrastaram-na
mais uma vez, até estarem de volta à cabine do meio do banheiro. Enfiaram a
cabeça de Caroline no vaso sanitário. A garota engasgava-se com aquela água
suja e cheia de bactérias quando, de repente, todas foram surpreendidas por uma
voz vindo da porta do banheiro:
- Mas o que
é isso? O que vocês estão fazendo? Soltem essa garota, imediatamente! – era a
coordenadora da escola, Dona Verônica, que empurrou as garotas e retirou a
cabeça de Caroline de dentro do vaso. As meninas fugiram correndo, sem olhar
para trás.
Nos dias
seguintes Caroline não foi mais vista.
Dona Verônica, que chegou ao
banheiro no momento em que as meninas malvadas mergulhavam a cabeça de Carol no
vaso sanitário, foi encontrada morta em sua casa, sufocada no banheiro.
Na semana seguinte ao ataque, Ana
Clara, a abelha rainha da maldade, entrou no banheiro após a aula de educação
física a fim de se refrescar. Vale ressaltar que a menina seguiu com sua vida
como se nada tivesse acontecido. Quando foi até o espelho para retocar o batom,
ela ouviu um grito histérico. Olhando para o reflexo no espelho deixou o batom
cair e se partir no chão, arregalou os olhos e não pode acreditar no que via. Atrás
de si estava uma loira, com tufos de algodão dentro do nariz e da boca, com
olhos inchados e escuros e uma cabeleira desgrenhada.
O espírito (ou seria um
fantasma?) aproximou-se de Ana Clara, abriu a boca, mas, não falou nada. De
seus olhos escorriam lágrimas de sangue. Sua presença fez os pelos do corpo de
Ana se arrepiarem. Feito uma criança pequena ela molhou as calças. Buscou
forças no fundo de seu interior e conseguiu sair dali aos tropeções. Deste dia
em diante, nunca mais abriu a boca para ofender ou denegrir ninguém.
Conta à lenda que Caroline não
resistiu àquele dia de ataques e ofensas, e acabou se suicidando no banheiro.
Alguns dizem que, até hoje, é possível ver o espírito da pobre garota loira de
nome Caroline.
Para todos aqueles que matam aula
e todos aqueles que ofendem e destratam os colegas, Caroline aparece feito um
espírito vagante, com algodão no nariz e na boca, ela segue buscando
companheiras para serem suas amigas no além e curtirem o recreio dentro da
cabine do meio do banheiro.
Se você quiser vê-la, pegue um
batom e encare o espelho sem piscar, por três minutos. Ou então, sente-se no
vaso sanitário da cabine do meio do banheiro e diga:
- Caroline, Caroline, Caroline,
antes que a aula termine, que o terror me domine e a escuridão ilumine, quero
que você me confine!
Dizem que ela aparece na hora.
Mas, para ter certeza, você precisa tentar...
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